Muitos audiófilos esquecem da música para ouvir apenas sons.
Autor: Eduardo Martins
Recente encontro de amigos audiófilos em casa…
– Ouçam… dá para perceber o ruído das unhas tocando as teclas do piano…
– O palco é imenso, talvez apenas alguns “centímetros” mais estreito do que poderia ser…
– Percebam o posicionamento da mão esquerda do pianista…
– Os graves abaixo de 50Hz parecem um pouquinho mais “gordos” do que deveriam… seria a qualidade técnica da gravação?
– Reparem os micro-detalhes e a dinâmica…
Diante desta cena, me veio uma pergunta: “Será que eles estão ouvindo a música?”
É estranho como a maioria dos audiófilos se torna tão crítica dos detalhes técnicos da reprodução eletrônica da música, que esquece da própria arte que é a composição musical.
Será que os mais velhos, quando escutavam suas músicas preferidas em suas velhas vitrolas mono, e se emocionavam com as canções da época, estava sendo enganados? Será que o que eles ouviam não era verdadeiro, mas sim uma grotesca réplica da realidade musical? Ou será que, apesar de não ouvirem a unha do pianista tocando o plástico das teclas do piano, eles tinham o dom de “sentir” a emoção contida na obra do artista?
Recentemente eu conversava com um amigo motoqueiro (até há pouco tempo eles consideravam a expressão “motoqueiro” um pejorativo para “motociclista”), e ele me disse que freqüentemente se reúne com outros amigos também motoqueiros para passeios turísticos em regiões pitorescas, visando uma aproximação com a natureza, bela e distante, e que só uma motocicleta era capaz de alcançar (???)
Perguntei ao amigo motoqueiro o que eles faziam nos locais onde iam. Depois de uma risada, ele respondeu, meio que encabulado “Falamos sobre motos, pilotamos nossas máquinas mais do que apreciamos a natureza, e olhamos mais as motos um do outro do que a paisagem, e alguns aproveitam para “ajustar” suas “belezinhas”…
Acho que muitos (a maioria) dos audiófilos são como os motoqueiros… o verdadeiro prazer é a máquina, e não a beleza que ela os faz alcançar.
Conheci raros audiófilos que passam mais tempo falando das canções do que dos equipamentos. O audiófilo, de uma forma geral (realmente não são todos), “ouve equipamentos”, e não música.
Alguns mal conseguem ouvir uma música inteira, sem pular para outra faixa para ver como o sistema “reage”. O equipamento não é o meio, mas o fim.
Nos fóruns de áudio e vídeo mais de 99% das calorosas discussões são sobre marcas ou modelos de equipamentos. A produção musical fica em segundo plano, ou terceiro, se considerarmos que os temas livres também superam o artístico.
Talvez o audiófilo seja um apaixonado pela tecnologia, e não pela arte.
Será que ouvir a unha do músico tocar o teclado do piano, escutar a sua respiração ou ouvir o violonista mascar chicletes é realmente algo relevante para o prazer musical? Eu tenho uma opinião: se você consegue ouvir tudo isso, então estamos diante de falhas graves da engenharia de gravação.
Outro dia li numa revista nacional sobre áudio que uma determinada caixa acústica possuia um “detalhamento” tão grande que era possível perceber detalhes na gravação iguais a estes citados. Mas, ao levar na casa de um amigo uma cópia do mesmo CD usado para teste pelo avaliador, pude perceber claramente esses mesmos “ruídos” em seu velho e surrado mini-system Sony, e ao ouvir este CD no carro enquanto voltava para casa, lá estavam ainda os mesmo ruídos que tanto impressionaram o experiente avaliador ao testar o equipamento. Alguém tem uma explicação para isso?
Particularmente, não acho que estes sons deveriam estar presentes no registro da obra musical. Também não acho que um audiófilo poderia ouvir esses sons numa apresentação ao vivo (o que mais uma vez me remete a defender a idéia de que o som ao vivo não é referência), nem mesmo se estivesse próximo ao piano. Talvez estes sons seriam percebidos se ele estivesse com os ouvidos colocados próximo ao teclado do instrumento, como provavelmente foi posicionado (mal posicionado…) o microfone que gravou a apresentação musical.
A canção é composta de notas musicais, emitidas por instrumentos desenvolvidos cuidadosamente para isso. Não acredito que ruídos como estes possam somar qualidades artísticas à obra.
Mas, parece que é isso que o audiófilo procura na maioria das vezes. Como o motoqueiro, é o brilho de um cromado ou o ruído do motor que justifica a motocicleta, e não o local mais belo que ela pode alcançar com a sua versatilidade.
Isso não é uma crítica ao audiófilo, pois conheço alguns que fazem de seus equipamentos o meio de alcançar uma reprodução musical um pouco mais pura. Repito… um pouco mais, porque normalmente eles não se mostram excessivamente perfeccionistas.
Talvez o audiófilo seja na verdade um “equipamentófilo”. Não importa o quanto a música esteja sendo fielmente reproduzida, mas sim os detalhes mais bizarros que ele pode identificar no meio da obra do artista que… afinal… quem é o artista?
O audiófilo está tão longe da música que ouve, como o motoqueiro está da bela natureza que se apresenta à sua frente. O audiófilo está mais excitado com seu próximo “upgrade” do que com a aquisição daquele disco maravilhoso de um artista genial.
Talvez nossos avós apreciassem realmente a música de verdade, e encontravam emoções em coisas que eles ouviam, e que o audiófilo, com toda a sua obsessiva dedicação e os equipamentos sofisticados e caros que possui, não é capaz de ouvir.
Talvez alguns audiófilos estejam mais longe da música do que imaginam.
Talvez alguns audiófilos nem mesmo gostem de música.
Eu nunca tinha pensado dessa forma. Estou entrando nesse mundo maravilhoso agora, e estava a procura realmente de um equipamento que me proporcionasse uma qualidade de áudio que me permitisse com a experiência e tempo perceber mínimos detalhes como uma unha na tecla de um piano. Mas esse texto realmente tem um sentido completo e me fez ver que o que deve ser aproveitado e realmente valorizado é a obra, a música em sí e o que ela representa além de vibrações e sons. O que se passava dentro da alma do compositor e o que essa vontade deixou expressa na obra em sí. Esse texto é assim como uma música, uma obra. Deve ser guardado a sete chaves e exposto a todo público que deseja apreciar uma boa música. Parabéns Eduardo.
Boa noite, Eudardo. Li o texto acima e esses exageros propalados por uma determinada revista nacional, quando o seu diretor está a fazer análise de algum equipamento que consta da propaganda da sua mesma revista, acha que isso é sinônimo de qualidade desse equipamento e como se só esse tal equipamento fosse capaz de tamanha proeza.
Há alguns anos, li um entrevista do cantor que considero o melhor de todos, Frank Sinatra, em que ele dizia que aprendeu com Benny Goodman como respirar para terminar bem uma frase melódica. Ele observava Benny tocar sua clarineta e notou que este tinha uma técnica muito apurada na respiração e pediu sua orientação (humildade de um grande cantor). Se ouvirmos todos os CD de Sinatra e também de Nat King Cole e Tonny Bennet, notaremos que esses cantores não emitem som de respiração. Se ouvirmos Maria Bethânia, o oposto se verifica. Nosso grande Nélson Gonçalves também era do time de Sinatra & Cia. Recentemente, Emílio Santiago.
Outro dia estava ouvindo um CD de Arthur Rubinstein tocando seu grande piano em meu equipamento modesto (receiver Sansui e Blue ray da Sony e minhas caixas Lando DRD 311) e meu neto de 11 anos me disse:- “vovô, parece que o piano que está tocando está aqui dentro da sua sala”. Meu equipamento não custa 3% em relação ao custo dos cabos que o site classaudio mostrou ontem e mesmo assim, a sensação da música está presente. Não precisamos de nada de custo extratosférico para sentirmos prazer em ouvir música, afinal a música é o que interessa e não o equipamento.
Texto conciso, agradável e inspirador. Muito bom Eduardo Martins. Entendi o seu ponto de vista, e confesso que ainda não tinha parado pra matutar sob essas questões. No entanto ouvir atentamente os “defeitos” da execução musical, desde que não seja de maneira obsessiva, é focar no lado humano da música. No rock por exemplo, existem gravações memoráveis de muito prestígio, onde se nota eventuais desafinações, esbarrões nas cordas, vazamento nos microfones e o clássico ruído de corrente alternada na guitarra. E é isso que torna o som “quente e vivo”, um exemplo de defeito bem vindo no território do áudio, são os caros echo de fitas. Onde o desgaste natural e a perca na precisão da rotação, criam uma atmosférica única. Saudações a todos!
Primeiramente gostaria de lhe parabenizar pelo texto.
Acredito que compartilho desta mesma visão.
Sempre fui um grande amante da musica, mas nunca me autodenominei um audiófilo, estou muito longe da acuidade auditiva dos senhores.
Mas pergunto… Será que existem audiófilos pobres?
Pois como na sua comparação, para ser um motoqueiro é necessário ter uma moto… Desta forma, para ser um audiófilo, eu precisaria ter um equipamento muito além das minhas posses…
Não vou dizer que não tenho os meus fetiches consumistas, mas nada equiparado a busca pelo Santo Graal que ocorre entre os equipamentófilos de plantão.
Então, como um simples amante da boa musica, onde o equipamento sempre será o meio e não o objetivo final, deixo aqui as minhas mais sinceras saudações…
Obrigado pelas considerações.
Você está na direção certa. Muitos “audiófilos” encontram-se perdidos neste universo do áudio.
Texto inspirador. Mesmo com os anos passando, continua muito atual. A arte é isso: reflexo da realidade. E é claro que terá características humanas. Que não necessariamente são erros. Odeio essa lógica de metrificar tudo, onde tudo esteja na mais perfeita ordem. É como se tirasse a vida e seguisse um modelo. O que faz a arte ser uma expressão humana tão única é a imprevisibilidade.
Olá Iuri
Obrigado pela sua participação.
Eu concordo com você. O que importa mesmo é o que você sente. Se gostar, deixe os palpiteiros de lado e seja feliz.
Abração
Eduardo