Como muitos audiófilos exageram na busca do som com qualidade.
Autor: Eduardo Martins
Ouvir música deveria ser um exercício prazeroso. A canção deveria nos proporcionar sentimentos agradáveis, nos afastando dos problemas e das preocupações. Mas, essa não é a verdade de todo o audiófilo. Alguns, na incansável busca da utópica perfeição, acabam fazendo de cada momento musical uma constante busca de detalhes técnicos que acabam por colocar a música no segundo plano.
O termo alta-fidelidade em áudio, ou Hi-Fi, como é comumente chamado, deveria ter sido mantido desta forma, ou seja, a audição musical com alta fidelidade. Mas, surgiu o Hi-End, e o que deveria ser mais um degrau na qualidade da reprodução musical, acabou virando sinônimo de uma busca incansável pela reprodução musical perfeita, como se isso pudesse realmente ser obtido com os equipamentos disponíveis hoje no mercado. Talvez um dia a tecnologia seja capaz de transformar qualquer sala residencial numa sala de concerto, em todos os seus detalhes.
O audiófilo inconformado não admite que o seu equipamento eletrônico possua qualquer detalhe que não reproduza fielmente o som ao vivo, como se o som ao vivo também pudesse ser perfeito. Salas de concertos possuem condições acústicas diferentes, e por isso são capazes de fazer soar diferente a mesma orquestra reproduzindo exatamente da mesma forma uma determinada música. O que dizer da acústica de nossas casas, que mesmo tratadas artificialmente, não chegam sequer próximo à acústica de uma sala de concerto. E como levar aquela apresentação ao vivo para um CD? O que dizer das gravações, incapazes de registrar com toda a exatidão qualquer apresentação ao vivo?
O audiófilo inconformado se justifica dizendo que não devemos abandonar a busca pela melhor reprodução musical. Mas, para isso, bastaria comprar os melhores equipamentos do mundo e a busca estaria terminada, com um custo que facilmente ultrapassaria a cifra de 1 milhão de dólares. Fora isso, qualquer que seja o equipamento comprado, sempre existirá algo melhor, e o audiófilo inconformado viverá insatisfeito, buscando nos detalhes os argumentos necessários para um novo upgrade, que muitas vezes o manterá ainda distante do que existe de melhor, e muito distante do ideal.
Ele fará inúmeras trocas de cabos, aparelhos e acessórios de todo o tipo. Fará dezenas de ajustes de posicionamento de caixas, testes com soluções acústicas e tratamento elétrico. Ao final, sempre constatará que tem “algo faltando”. Nessa busca incansável, a música já ficou para segundo plano. A arte deu lugar ao inconformismo detalhista. As canções se tornaram meras ferramentas de análise, e cada audição se tornará um trabalho crítico, e não um momento de prazer. O inconformismo normal e saudável cede lugar para o inconformismo exagerado, incômodo e doentio. O mundo do audiófilo se restringe aos seus equipamentos, e não mais a música. Todos os seus recursos passam a ser canalizados somente para seus upgrades, e os demais prazeres da vida lhe parecem menos importantes. Porém, apesar de tudo isso, ele continua insatisfeito, já estudando o próximo upgrade.
Nenhum destes upgrades vai deixá-lo satisfeito. Ele nunca vai admitir que já chegou num ponto de alta fidelidade. Existe o a teoria do “Hi-End” que lhe diz que é possível ir mais longe. E a música? Bem, ela não é perfeita pois “ainda falta algo”.
Podemos encontrar audiófilos que passaram a vida buscando o “topo do pinheiro”, e confessam que estão ainda muito distantes dele. Os fabricantes felizes agradecem essa ironia do destino.
É possível ir mais longe? Sempre é. Mas, a que custo? E não só financeiro, mas aqueles causados pelo inconformismo, pela ansiedade e pela falta de aproveitamento do prazer que a música pode oferecer quando a atenção está voltada somente para ela, e não para aquele detalhe que parece ter se transformado num monstro destruidor de toda a arte musical.
É possível observar o fracasso dos testes cegos, mesmo aqueles feitos com especialistas de áudio. E as avaliações feitas em grupo? Estas são mais curiosas. Alguns percebem sutis diferenças, outros não. Algumas vezes descobre-se que muitos deixam-se lavar pelas sugestões de preço, marca, aparência e até pelas palavras de alguém. Estas diferenás existem realmente? E, se existem, não fica claro que são tão sutis que poderiam ser desprezadas para a apreciação musical?
O ponto é: até onde ir? Se não for estabelecido um limite, não existirá um fim, e as vantagens conseguidas pelo custo que significaram poderão não ter valido a pena, pois a reprodução perfeita não foi atingida. Qual o exato momento onde devemos desviar nossa atenção do equipamento para a música? Quando devemos dizer: “Basta !” ? Essa pergunta só pode ser respondida individualmente. Cada um sabe o limite do quanto gastar. Quem possui condições financeiras melhores poderá comprar algo melhor, quem não as possui, poderá se contentar com algo inferior, mas não ruim. Essa inferioridade é também discutível já que, como vimos, não existe um ponto claro do que é melhor a partir de certos limites e dentro de determinadas faixas. Evidente que uma caixa acústica de US$ 200.000 deverá tocar melhor que outra de US$ 1.000. Mas, quanto exatamente tocará uma caixa de US$ 2.000 em relação à essa outra. Quanto custará esse sacrifício? Sim, sacrifício, pois sempre buscamos algo dentro de nossas possibilidades, e a partir daí ultrapassamos nossas capacidades, que muitas vezes nos custa muito caro. Porque alguém compraria um equipamento de US$ 5.000 e vivesse depois de sucessivos upgrades até chegar a valores bem superiores e ainda assim insatisfeito com os resultados?
Muitas vezes a vida nos brinda com algumas condições financeiras favoráveis, ou a tecnologia nos trás algo melhor por preços mais acessíveis. Este é um upgrade coerente. Mas, é coerente o simples fato de achar que um equipamento de alta fidelidade não é suficiente e com bastante sacrifício partir para outro que proporcionará uma melhora muitas vezes pouco perceptível, e logo depois descobrir que esse também não é bom?
Numa analogia, muitos tiveram como seu primeiro carro um fusca, e certamente hoje possuem modelos bem mais potentes, bonitos, sofisticados e confortáveis. Mas, quem trocou um fusca por outro carro para ganhar um sutil ou quase imperceptível desempenho do motor, ou porque o novo modelo possuía uma muito pequena diferença de espaço no porta-malas? Nessas trocas de modelos de automóveis foi preciso experimentar várias vezes um carro na estrada para tentar sentir se existe ou não uma diferença de potência de motor. Ouve contradição com um grupo de especialistas em carros para tentar identificar qual deles poderia ter o maior silêncio interno? Esses “upgrades” eram sempre evidentes, mesmo que fosse para “saltar” de um fusquinha 1300 para um modelo 1600. A diferença era notável. Então porque achar que a troca de cabos de um sistema de áudio é algo tão necessário, misterioso e ao mesmo tempo com poucas ou nenhuma vantagem evidente?
Parece que o exagero fica claro dessa forma.
A indústria e o comércio (e também aqueles que de uma forma ou outra se beneficiam deles) induzem o desejo de mudança. Fazem parecer que o salto na utilização daquele componente representará muito mais do que ele realmente é capaz de proporcionar. E muitas vezes o comprador vencido pela sugestão acredita mesmo na melhora.
Se observamos a falta de consenso que existe no mercado sobre o que é Hi-End, sobre o que faz ou não faz diferença, sobre a pequena e questionável vantagem obtida sobre cada componente, sobre o que é alta fidelidade e o que é a utopia da fidelidade absoluta, sobre o custo de cada novo upgrade e, principalmente, o que é necessário para usufruir do prazer musical, encontraremos o limite da coerência e do bom senso, e da insanidade audiófila.
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